John Carmack e John Romero são dois gênios loucos dos games. Pode ser que você não os conheça pelos nomes, mas eles são responsáveis por vários dos conceitos de jogos famosos e de tecnologias usadas até hoje em games que você joga.
Tudo isso foi criado em meio a excentricidades absurdas e histórias tão loucas que chega a ser difícil de acreditar, mas que fazem a vida dele ser tão interessante e impressionante. Não à toa, eles são considerados duas das pessoas mais importantes, influentes e sem noção da história dos videogames.
A origem das lendas
O jovem John Romero no começo dos anos 90. Fonte: ID Software
John Romero nasceu em meio a muita dificuldade. Por ser descendente de índios e de mexicanos, ele teve uma vida dura no Colorado (Estados Unidos), mas como seu pai era ex-mecânico da Força Aérea, conseguiram aos poucos se reerguer. Ele passou a gostar de videogames vendo Space Invaders, Pac Man, jogos de labirintos e vários games desenvolvidos para o antigo Apple II.
Já John Carmack nasceu no Kansas, filho de um repórter de uma emissora. Estudou em boas escolas e desde cedo já era considerado um gênio. Gostava dos mesmos tipos de jogos que Romero, seu futuro parceiro.
Inclusive, querendo usar ainda mais o Apple II, ele criou uma solução química para derreter janelas de uma escola e assim ajudar alguns amigos a roubar alguns modelos. A ideia não deu certo, pois um dos comparsas ficou entalado, fazendo o alarme disparar, em uma cena digna de filme da Sessão da Tarde.
Mas as consequências foram reais: ele passou cerca de um ano preso e foi diagnosticado por psicólogos como sem empatia com seres humanos e apenas “um cérebro com pernas”. Um diagnóstico que falava muito sobre futuro dele.
O jovem John CarmackFonte: Wikia
Enquanto Carmack inaugurava sua ficha criminal, João Romero já estava programando em seu Apple II com apenas 13 anos de idade. Com 16 ele já tinha um jogo publicado e sua própria empresa, se tornando capa de revistas especializadas no fim dos anos 80. Até 1989, ele passou por diversas companhias, fundou outras, criou e cocriou dezenas de jogos, até seu amigo de parceiro de negócios Jay Wilbur o convencer a aceitar uma proposta para comandar a divisão de projetos especiais da Softdisk, uma pequena companhia de jogos para PC em MS-DOS.
Softdisk e o início da dupla
Enquanto Romero chegada na Softdisk, Carmack, por outro lado, conseguiu entrar em uma boa faculdade devido à sua grande inteligência, mesmo já tendo ficha criminal. No entanto, ele largou os estudos já no segundo semestre, passando a trabalhar como freelancer.
Foi assim que ele conheceu John Romero, que passou a contratá-lo para trabalhos esporádicos na Softdisk. Junto a ele, chegaram também o xará de sobrenome Adrian Carmack, do departamento de artes e Tom Hall, designer criativo. O trabalho deles era principalmente comandar o Gamer’s Edge, um sistema de assinatura semestral e jogos feitos por eles mesmos. Foi ali que tudo começou.
Carmack se mostrou um prodígio ao criar o sistema de rolagem de tela suave de alta qualidade para qualquer direção que funcionasse nos PCs. Rolagem de tela já era super comum nos consoles, como Nintendo 8 bits, mas um imenso obstáculo na programação de jogos para computador.
Ele detonou esse obstáculo refazendo todas as primeiras fases do Super Mario Bros 3 em um limitadíssimo computador de 1990, e de maneira rápida: Carmack e Tom Hall programaram tudo em apenas uma noite. Romero e Wilbur entenderam que aquilo era um novo passo para a indústria dos jogos para PC, pois agora poderiam competir com os consoles.
Só que ao invés de aproveitar essa incrível inovação e criar jogos revolucionários para PC, eles tiveram a bizarra ideia de pegar os computadores da Softdisk para melhorar demonstração e mandar ela para Nintendo, pedindo para Big N quebrar exclusividade dos jogos de Mario em contratá-los para fazer um port dos jogos para PC. Pura inocência. Após semanas de trabalho, a Nintendo, que em poucos meses lançariam Super Nintendo com a exclusividade dos jogos de Mario como o marketing principal, obviamente recusou a oferta.
Carmack tentou parceria com a Nintendo, mas a empresa japonesa recusou a oferta.
Por sorte, Scott Miller, da Apogee Software, hoje conhecida como 3D Realms, era um fã dos jogos da equipe da Softdisk e fez de tudo para encontrar com seus criadores. Scott e a Apogee foram pioneiros no modelo de vendas shareware, onde o primeiro episódio o jogo é dado de graça, mas é preciso pagar pelo restante — ou seja, algo similar ao modelo de demonstração de jogos que temos hoje, só que feito com disquete e cheques enviados pelo correio.
Após mostrar a demo do Mário de PC para Scott, eles fecharam com a Apogee para realizar o lançamento de um jogo ainda naquele ano, mas sem deixar a Softdisk, pois a empresa era uma renda fixa. A solução encontrada foi trabalhar de dia no emprego normal e à noite e nos fins de semana no novo projeto na pequena casa de Carmack. A equipe trazia Romero e ele como programadores, Tom Hall primeiramente como designer e depois como diretor criativo, Wilbur como gerente e, por fim, Adrian Carmack na arte.
O primeiro game da equipe foi o clássico Commander Keen, um jogo de aventura em plataforma com rolagem de tela jamais vista no PC e que foi um sucesso de vendas na época. Com os primeiros lucros, eles decidiram deixar a Softdisk, fazer alguns ajustes na equipe e seguir focados na própria empresa. Assim nasceu a ID Software, em primeiro de fevereiro de 1991, que nos próximos cinco anos faria mais 27 jogos e muita história.
Wolfenstein e os jogos de tiro em primeira pessoa
A equipe ainda fez alguns jogos para Softdisk e quase todos os episódios do jogo Commander Keen para Apogee, que em 1991 já lucrava cerca de 50 mil dólares com o jogo por mês, mas um foco principal era outro. Com a experiência em rolagem lateral no jogo anterior, Carmack aprimorou as ideias, conseguiu dar profundidade as fases e criou a própria engine que podia simular um cenário 3D renderizando apenas o que estava visível ao jogador.
Então o Romero teve a ideia de fazer um remake do jogo stealth Castle Wolfenstein, de 1981 e transformá-lo em um jogo de ação rápido cheio de realismo e violência. Após a compra dos direitos e muito trabalho, o clássico Wolfenstein 3D foi lançado em 5 de maio de 1992. Embora o conceito já existisse, nascia ali os jogos de tiro em primeira pessoa como conhecemos hoje. A produção revolucionou, foi um sucesso gigante e é considerada o avô de games como Call of Duty, Battlefield, Far Cry, Halo e vários outros.
Wolfenstein chamou muita atenção por ser um jogo rápido, 3D, violento e com gráficos nunca vistos na época. Muito diferente dos jogos de PC que até aquele momento em grande maioria eram em 2D mais lentos e simples. O jogo fez a ID software ganhar vários prêmios e lucrar cerca de 200 mil dólares por mês só nos primeiros 18 meses.
Além disso a companhia passou a fazer vários ports do jogo e vender licenças do motor gráfico criado por Carmack, para que outras empresas também pudessem fazer jogos com a mesma qualidade. com essa estratégia, eles não só lucraram ainda mais, como também tinham sua marca em vários outros games lançados na época. Eles estavam ricos, fazendo sucesso e com todo mundo bajulando eles.
A equipe estava tão confiante que só fazia o que queria.
Pouco tempo depois, a ID Software vendeu os direitos de Wolfenstein para uma empresa japonesa que os recontratou por cem mil dólares adiantados para fazer um port do jogo para o Super Nintendo, que foi um caos total, pois eles não estavam nem aí para o projeto. A equipe só queria fazer o que eles estavam afim de fazer, já que seu game estava sendo elogiado por quase todos.
A única exceção foi Alemanha. O Departamento Federal de Mídia Nociva a Jovens não gostou dos símbolos nazistas que lembravam o passado do país. Com isso, o país baniu Wolfenstein de ser vendido por lá — assim, todo e qualquer outro game com esse tema lançado posteriormente também passou a ser proibido de ser lançado em terras bávaras a partir de então.
Nesse meio tempo, Romero recusou diversas propostas para tornar a ID Software uma empresa de capital aberto. Ele também recusou um acordo de aquisição de dois milhões e meio de dólares de uma grande companhia. Até da Apogee se distanciaram. O foco era ser completamente independentes, fazendo tudo à maneira deles, à maneira ID Software.
Da esquerda para a direita: John Carmack, Kevin Cloud, Adrian Carmack (ao fundo), John Romero, Tom Hall e Jay WilburFonte: id Software
DOOM e o encontro de demônios com tecnologia
Focados, fortes, animados e com muito dinheiro, John Romero, John Carmack e a equipe da ID Software adquiriram um ótimo motor gráfico construído por outra empresa e isolaram Carmack para que ele pudesse aprender a utilizá-lo. Quando finalmente voltou de seu “exílio”, Carmack não só tinha aprendido a usá-lo como também o usou de base para melhorar, ampliar e construir uma nova e incrível engine praticamente do zero trabalhando em cima do motor de Wolfenstein. Uma novidade dessas empolgou muito Romero, que imediatamente começou a pensar no próximo jogo da companhia. A ideia seria algo mais obscuro, porém no mesmo estilo do game anterior.
Inspirado pela campanha de Dungeons and Dragons que mestrava no escritório durante vários anos, Carmack deu a ideia: colocar demônios contra alta tecnologia. Romero adorou e imediatamente começou a pensar no design, fases e tudo mais, colocando toda a equipe para trabalhar no próximo jogo da empresa. O ambicioso e revolucionário projeto foi batizado de Green and Pissed, que significa algo como verde e com raiva, mas que depois foi renomeado para Doom, que era o nome de um taco de sinuca de Tom Cruise no filme A Cor do Dinheiro, de 1986.
Sob a liderança de Romero e Carmack, os outros três funcionários da ID software foram movidos para um novo escritório para trabalhar no projeto: uma sala em um prédio escuro que chamavam de “Suíte 666”. Eles usavam como inspiração os gemidos e ruídos vindos da sala ao lado, que parecia um calabouço onde alguém torturava pessoas, mas o que acontecia lá era muito pior que isso: aquilo era um consultório de um dentista.
A engine de Carmack brilhava, pois cada conteúdo do jogo tinha seu próprio arquivo independente, assim era muito fácil modificar o game sem estragá-lo. Carmack até incluiu um editor de mapas online para qualquer um mexer no jogo como quisesse. Um que mexeu bastante foi Romero: ele levou a engine a outro nível ao melhorar o sistema de iluminação e programar itens complexos como plataformas móveis e interruptores, o que fez Carmack criar ainda mais outras implementações novas.
Buscando fazer o game ainda mais realista, a ID Software usou modelos reais de inimigos feitos de argila, metal e latex, além de fotos de um livro de Stephen King, brinquedos e até eles mesmos. Um exemplo é o braço do protagonista, que nada mais é que uma foto do braço de um dos funcionários da companhia chamado Cloud.
Jay Wilbur, Adrian Carmack, John Romero (abaixado), Kevin Cloud (ao fundo) e Carmack (à direita)Fonte: id Software
O diretor criativo Tom Hall fez um gigantesco manual mostrando design das fases e toda complexa história onde cientistas abrem um portal das luas de Marte de onde saem alienígenas inimigos que, com o passar das fases, vão infectando o design do cenário e se revelando demônios, pois o portal não era exatamente para outro mundo e sim para o inferno.
Romero e principalmente Carmack recusaram prontamente todo o conceito de design das fases e cortaram grande parte da história focada em personagens para focar em tecnologia, pois segundo Carmack, “a história de um jogo é como a história de um filme adulto, espera-se que esteja lá, mas não é tão importante”
Após várias adaptações, os trabalhos de Tom Hall foram sendo descartados, o que acabou culminando na demissão dele e sua substituição por outros dois designers. Com isso, Romero assumiu definitivamente a liderança do projeto. Com os novos designers, ele pôde colocar em prática um plano mirabolante que ele tinha para o jogo. Inspirado no modo versus de Street Fighter 2 e Fatal Fury, ele teve a ideia de colocar 4 computadores ligados online para que os jogadores se enfrentassem no cenário, o que ele chamou de Deathmatch, um modo de jogo multiplayer revolucionário que entrou no game e se tornou também essencial para o sucesso de todo e qualquer game de tiro lançado após isso.
Com todas as revoluções e melhorias, quando Doom foi finalmente lançado em dezembro de 1993, o sucesso foi instantâneo. Cerca de 30 minutos após o lançamento, o jogo já tinha travado e servidores de download com 10 mil pessoas tentando baixar ao mesmo tempo. algo que para a época era impensável. Em algumas horas várias universidades e até a Intel já estavam anunciando proibições de usar suas redes internas para jogar Doom.
Em 1995 ,estimou-se que existiam mais computadores com Doom do que com o Windows 95 instalado. Isso fez com que a Microsoft pagasse para a ID Software para poder ter um port do sucesso em seu novo sistema operacional e assim tentar ajuda-lo a vender mais. Quem ficou à frente dessa versão foi um promissor programador chamado Gabe Newell que após trabalhar em Doom e ver sucesso de um amigo que se tornou funcionário fixo da ID Software, decidiu criar sua própria empresa. Nascendo ali a Valve e posteriormente a Steam.
Em 1995, existiam mais computadores com Doom do que com Windows 95
Antes, jogos para PC eram um só adicional para quem comprava um desses caros equipamentos para estudar ou trabalhar, mas depois de Doom, computadores passaram a disputar espaço com os consoles e fliperamas. Foi um verdadeiro divisor de águas para a plataforma. Com o impressionante sucesso e o revolucionário motor gráfico de Carmack, Doom ganhou ports para praticamente qualquer coisa que tenha botões e uma tela, como termostatos, geladeiras e micro-ondas. Virou praticamente uma challenge ou um meme entre os programadores tentar colocar Doom em qualquer coisa.
Isso aconteceu pois a ID Software revolucionou ao liberar gratuitamente o código fonte do game, o que ela repetiu em vários de seus jogos posteriores. Ela foi uma das pioneiras e ajudou a divulgar a filosofia do código-livre, que hoje nos permite ter vários programas de graça no computador. Além disso, essa engine era tão fácil de manipular que rapidamente surgiram uma enxurrada de mods de Doom, que englobam não só fases e monstros novos, mas reconstroem o game do zero criando até aventura similares a de filmes como Star Wars e Alien.
Entretanto, com o sucesso vieram as críticas. A violência gráfica fez Doom ser acusado de supostamente ser responsável por massacres em escolas, como em Columbine. O jogo foi chamado de simulador de assassinato em massa e foi criticado pela comissão que criou a classificação etária nos Estados Unidos, se tornando o inimigo número um de muitos pais.
Independente das polêmicas, estima-se que nos primeiros dois anos de vida, Doom tenha sido jogado por cerca de 10 milhões de pessoas, mas, devido à pirataria, apenas três milhões teriam cópias oficiais. Dessa forma, a ID Software teria lucrado em torno de 100 mil dólares por dia apenas com Doom. Isso garantiu várias sequências nos anos seguintes, com destaque para Doom 64 e Doom 2, que contou com a possibilidade de jogar o modo Deathmatch entre os computadores de uma mesma rede, sem precisar de internet — a chamada conexão Lan, técnica popularizada posteriormente pelas Lan Houses e Lan Partys.
Quake e o grande ego de seus criadores
John Romero e John Camack com algumas de suas Ferraris. Fonte: Disruptor
Com todo esse sucesso e dinheiro, os fundadores da ID software viviam como estrelas do rock, algo muito diferente da imagem dos nerds da época, alçando eles ao status de heróis e celebridades. Romero, principalmente, era visto não apenas nas revistas e na televisão, mas até nos próprios jogos como easter egg.
Os fundadores da ID software faziam festas sem parar e quebravam coisas do escritório por pura diversão: em uma situação, chegaram a usar um machado de guerra de cinco mil dólares para Carmack destruir a porta da sala de Romero durante o horário de trabalho, porque ela emperrou.
O grupo também fazia compras absurdas e até fez coleções de Ferraris, dando uma de graça para um jogador sortudo. Tudo isso entre uma e outra partida da aventura the Dungeons and Dragons que durou literalmente anos no escritório. O ego deles estava muito lá em cima, e esse foi o começo da queda.
Uma das portas, mesas e tudo mais que eram vítimas dos funcionários do escritórioFonte: Insert Coin Classicos
Além da violência excessiva, uma das maiores críticas feitas a ID Software era que os jogos de Doom, não eram 3D de verdade, como já se via nos consoles com o PlayStation 1. Então Carmack começou a desenvolver uma engine gráfica completamente nova focada em gráficos 3D, só que realista. Ao mesmo tempo, ele estava criando o complexo sistema de redes Integradas para o multiplayer do jogo com diversos recursos inéditos. Romero, como diretor, deveria decidir o design, jogabilidade e demais conteúdos do novo projeto, mas foi aí que o casamento perfeito acabou.
Durante o desenvolvimento do que se tornou Quake, Romero e Carmack não se entendiam. Uma guerra de egos mudou completamente o ambiente e se arrastou pelos quase três anos do constantemente atrasado desenvolvimento do game. Romero queria a equipe focada em elementos de RPG e um ambiente medieval, com dragões e muita luta corporal inspirada em Virtua Fighter, enquanto Carmack queria um jogo de ação que levasse o jogador pelas fases até o fim, a fórmula de sucesso do Doom e Wolfenstein.
Como diretor, Romero exigiu que sua visão fosse seguida, mas no meio do desenvolvimento, a ID Software simplesmente abandonou a visão dele e optou pelo estilo de Carmack. Vencido, Romero até aceitou continuar, mas era acusado de pouco contribuir, deixando a situação insustentável, mas independente dos problemas, o jogo ainda tinha que ser terminado de qualquer jeito e logo, e foi.
Quake foi lançado em 1996 com dublagem, trilha sonora e design de som feitos por Trent Reznor, líder da banda Nine Inch Nails, e trazia novos modos de multiplayer, inclusive em equipe, além de melhorias no online e gráficos de cair o queixo. O jogo foi um sucesso de críticas com notas melhores que Doom. O título recebeu diversos ports para as mais diferentes plataformas, mas embora o público fosse grande, os lucros não eram.
Mesmo com os conflitos internos, Quake se tornou um sucesso
O jogo foi facilmente pirateado a partir do disco com a demonstração, que contia todo o jogo incluso. Um erro besta e inédito para eles. Por isso a ID Software retirou esse disco do mercado, o que fez ela perder o período de vendas do fim de ano. Quake só chegou a um milhão de cópias vendidas apenas quatro anos depois do seu lançamento, números bons para aquela época, mas em comparação com que a ID software vinha fazendo era uma queda gigantesca.
Ion Storm e o fracasso de Daikatana
Aproveitando que o público estava jogando e adorando Quake, Romero anunciou que estava deixando a empresa que fundou para criar uma nova, a Ion Storm. Em entrevista, ele disse que sair após um jogo de sucesso foi uma escolha certa e que foi tudo tranquilo, pois era amigo dos funcionários há muitos anos. Praticamente tudo na declaração não era verdade.
Romero foi forçado pela equipe a se demitir e sair da ID Software, não recebendo um centavo sequer por Quake, mesmo sendo creditado como diretor. Mas ele não deixou barato: chamou Tom Hall de volta e começou a planejar um jogo onde a história seria muito parecida com a campanha de RPG que Carmack mestrou por anos nos escritórios da ID Software.
Até o nome do jogo deveria ser igual ao objeto mais buscado na aventura do agora ex-amigo: a Daikatana. Acima de tudo, a intenção do novo projeto era ser o mais ambicioso de todos e ter praticamente tudo que Romero planejou para Quake, mas foi desautorizado a fazer. Para reforçar o tom de provocação, ele deu uma declaração afirmando que programar Daikatana seria mais divertido do que fazer Quake, pois não havia interferência criativa. Ele não poderia estar mais errado…
Chase Tower, onde nasceu a Ion StormFonte: Logical Solutions
O primeiro passo era montar o estúdio da Ion Storm, mas ao invés de comprar ou alugar um escritório, Romero comprou uma luxuosa cobertura de vidro no valor de dois milhões de dólares que ficava em um famoso arranha-céu em Dallas chamado Chase Tower. Em seguida, contratou sua então futura namorada como designer, pois ela teria vencido em uma melhor de três no Quake. Na verdade, ele decidiu formar sua equipe inicialmente apenas com designers, sem nenhum programador, como se dissesse que não precisava de pessoas como Carmack ali, pois, de acordo com ele, “Tetris tinha uma programação bosta com um grande design, e por isso que ele é bom”.
O desenvolvimento se iniciou usando a engine de Quake 1, mas no meio dos trabalhos, Quake 2 foi lançado e Romero gostou mais dele do que do próprio jogo. Por causa disso, ele jogou fora tudo que já tinham feito e recomeçou o projeto do zero na engine do Quake 2. Isso resultou em dois anos de atrasos e adiamentos, o que irritou muito os fãs.
Além disso, o “escritório” tinha vários problemas como local de trabalho: além da falta de profissionalismo e várias péssimas decisões de John Romero, era impossível trabalhar na Chase Tower, pois o lugar tinha mais áreas de diversão do que de trabalho em si. E como o teto é de vidro, o sol batia diretamente nos funcionários e em seus monitores o dia inteiro, tornando impossível ficar ali durante o verão, por exemplo.
Com esses e vários outros problemas, pouco a pouco, diversos designers decidiram deixar a equipe ou foram transferidos de estúdio, obrigando Romero a ter que refazer o time algumas vezes. Certa vez, nove dos 15 funcionários teriam anunciado publicamente suas demissões juntos. No fim, apenas dois empregados da Ion continuaram desde o começo: Romero e Tom Hall.
Publicidade de Daikatana vinculada em diversas revistas de games em 1998. Fonte: Know Your Meme
Em meio a críticas e dúvidas, o estúdio decidiu fazer algumas propagandas para acalmar os fãs e dizer que eles ainda estão trabalhando. O problema é que as peças não divulgavam o jogo, mas sim Romero, e uma delas dizia: “John Romero vai fazer de você a p*** dele!”. Obviamente, deu muito ruim. A ideia só afastou ainda mais os jogadores e é conhecida como uma das piores campanhas publicitárias da história dos games.
Daikatana é conhecido como um dos piores jogos da história
Após quatro anos de desenvolvimento e muitos problemas, Daikatana foi finalmente lançado com muita publicidade paga para alavancar o jogo. Isso, no entanto, não impediu um fracasso monumental, com crítica em todos os aspectos possíveis, principalmente os técnicos. O título se tornou uma piada, vendendo apenas 9 mil cópias nos primeiros meses e figurando nas listas dos piores jogos da história, mas engana-se quem acha que esse foi o fim de John Romero.
O designer sabia como aparecer na mídia e fazer barulho. Seja bem ou mal, estavam sempre falando dele. Por isso logo após fundar a sede da empresa em Dallas, ele criou uma filial menor em Austin, só que liderada por profissionais convencionais em um lugar que realmente era o estúdio. Com essa estrutura e publicidade em volta, a Eidos Interactive, que lucrava muito com Tomb Raider, decidiu investir alto no produtor e adquiriu 51% da Ion Storm, além de fechar um contrato de seis jogos com os estúdios com pagamento adiantado. Só que com os atrasos, publicidades caríssimas e o gigantesco fracasso de Daikatana, a Eidos havia jogado muito dinheiro fora.
A empresa ainda chegou a lançar um novo jogo em 2001 dirigido por Tom Hall chamado Anachronox, que acabou sendo bem recebido. No entanto, como ele estava com um atraso de 3 anos, só gerou ainda mais gastos, fazendo com que a Ion Studios no Chase Tower fechasse as portas dias após o lançamento. Porém, a filial em Austin estava indo bem com sua recente criação, a série Deus EX, e depois com os trabalhos na série Thief, um legado oculto e indireto de Romero que poucos lembram.
O legado da ID Software
Enquanto Daikatana era produzido, Carmack começou a mudar o foco da ID Software. A companhia amargava altos e baixos em seus jogos, com elogios a qualidade técnica e críticas às mesmices no design. O motor gráfico de Carmack foi licenciado para empresas menores como a própria Ion Storm e a Valve, que o utilizou para criar Half-Life.
Porém, com o tempo, a tecnologia da ID Software acabou ficando no passado e foi sendo superada por uma concorrente bastante conhecida atualmente: a Unreal Engine, da Epic Games. Para continuar a ter bons lucros, a empresa começou a desenvolver softwares diversos para computadores e criou a Quakecon, um evento próprio.
A ID Software foi praticamente uma incubadora de grandes talentos da indústria, marcando a história dos games
Só que internamente, a ID Software não era mais como antigamente, era um caos, principalmente com o “cérebro com pernas” Carmack não tendo qualquer habilidade social ou empatia com as pessoas que agora liderava. Vários talentos e até fundadores eram forçados a se demitir ou vender as suas participações na empresa por preços irrisórios, enquanto publicamente a companhia dizia que as saídas eram de comum acordo e felizes, exatamente como fizeram com Romero.
Um dos últimos registros do “dream team” da ID Software reunidoFonte: Id Software
Dessa forma, a ID Software passou a perder diversos talentos inovadores para outras empresas. Relembre alguns casos importantes:
- Sandy Petersen ajudou a criar Age of Empires;
- American’s Mcgee convenceu a EA a fazer seu primeiro jogo +18, a série Alice;
- Paul Steve se tornou diretor criativo do Xbox;
- Tom Hall inicialmente foi trabalhar no jogo Prey;
- Jay Wilbur foi comandar os negócios da então pequena Epic Games, dona do tal novo motor gráfico concorrente chamado Unreal Engine;
- Adrian Carmack precisou entrar na justiça para ter o valor correto de sua participação de 41% como fundador;
- Shawn Green ajudou a fundar a Bethesda Game Studios, responsável por The Elder Scrolls e Fallout;
- Até o publicitário Mike Wilson, que trabalhava com a ID e depois fez aquela Infame divulgação da Ion Storms, em seguida criou a Devolver Digital, publisher de diversos jogos indies famosos, inclusive Fall Guys.
Isso apenas para citar alguns dos grandes nomes treinados pelos Johns que saíram ou pediram para sair apenas após o rompimento de ambos. A ID Software foi praticamente uma incubadora de grandes talentos da indústria, marcando a história dos games.
Como estão Carmack e Romero atualmente?
Carmack continuou revolucionando no mundo dos games. Fonte: VRScout
A ID Software acabou sendo vendida para a ZeniMax, dona da Bethesda, e hoje faz parte do crescente catálogo de estúdios da Xbox, divisão de games da Microsoft. Carmack acabou deixando a empresa em 2013, sendo o último fundador que faltava para deixar a companhia. Ele já era cultuado como desenvolvedor, mas não estava bem.
Camarck chegou a fundar Armadillo Aerospace, focada em turismo na órbita da Terra, mas gastou todo o seu dinheiro e não conseguiu fazer a ideia funcionar. Em seguida, direcionou sua atenção para a realidade virtual e ajudou a criar a Oculus, uma das mais conhecidas marcas de óculos VR, que foi vendida para o Facebook por 2 bilhões de dólares. Em 2019, ele se afastou da Oculus e passou a trabalhar com inteligência artificial.
Já Romero criou várias outras empresas e jogos, inclusive com os ex-fundadores da ID Software, mas nunca com Carmack. A maioria desses projetos não deram certo, mas sempre fizeram certo barulho na indústria. Na Midway, ele liderou a equipe que criou o jogo Gauntlet, mas os abandonou pouco antes do lançamento.
Ao lado de sua esposa, ele também fundou a Romero Games e se reinventou fazendo jogos simples para redes sociais e dispositivos móveis, com muito sucesso e lucro. Ravenwood Fairy teve cerca de 3 milhões de jogadores só no Facebook, isso sem falar dos trabalhos que fez para a Marvel e para Ubisoft.
John Romero continuou sendo o cara das ideias a frente. Fonte: Nerd Bunker
John Romero e John Carmack hoje se falam apenas superficialmente, mas são sempre lembrados juntos nas listas de pessoas mais importantes da história dos Games. A vida deles se tornou o best-seller Masters of Doom, que não só serviu de principal fonte para este artigo, como também teve os direitos comprados pelo ator James Franco para produzir uma série. Além disso, a história ainda inspirou Palmer Luckey a investir em óculos de realidade virtual portáteis, tornando-os como conhecemos hoje.
Romero e Carmack só possuem duas coisas em comum: são nerds e malucos, mas juntos praticamente fizeram a indústria dos jogos em computador parar de engatinhar e dar saltos de evolução em muito pouco tempo. Não só por seus jogos e tecnologias revolucionárias, mas também por descobrirem e prepararem diversos profissionais na área que foram para outras companhias.
Franquias como Call of Duty, empresas como a Epic e a Valve, jogos online e de Lan House e vários games realistas em 3D, tem muito a agradecer a esses dois gênios loucos. Um legado inesquecível banhado a muito sangue pixelado e todo tipo de excentricidade.